POSTA-RESTANTE

Estavam os dois ali. Despretensiosos. Ele, fervilhando suas inquietudes, vendo tudo sem realmente prestar atenção em nada. Deslizando suas botas e sorriso fácil pelos corredores. Ela, arregalava os olhos ansiosos, prestava atenção em todos, atenta. Faminta daquele ambiente que, por fim, se reencontrava, onde se sentia tão ela mesma. Respirava tranquila, mesmo dentre tantas inseguranças. Quanto arriscou para estar exatamente ali. Entretidos com suas próprias rotinas, pareciam não ligar um para a presença do outro.

Os dois não pensaram. E foi assim, displicentemente, sem se buscar, que eles se viram. O cabelo apanhado, os olhos gigantes, a boca mordida e a eletricidade que surgiu daquele cruzar de olhos. Um olhar que se sustentou segundos a mais do que deveria. Naquele micro instante, eles se reconheceram. E dali, daquele segundo que congelou o tempo e antecedeu o micro instante, não haveria mais volta.

Ela hesitou. Achou que estava imaginando coisas. Perguntou em silencio. Ele respondeu. Ela sabia que era para ela. Ele sabia que ela havia entendido. Nenhum dos dois disse não.

Curiosidade, definiu ele. Um querer saber inexplicável sobre ela. Não pensou. Não mediu riscos. E divertiu-se ao vê-la gerundiar. Ela sabia que não era curiosidade. Aquela vibração lhe era estranhamente familiar. Ela já tinha sentido aquilo uma única vez e não saberia dizer se um dia chegou a recuperar-se. Não. Não poderia ser. Não deveria.

Seguiram sem dizer não. Queriam mais. Saber todo o tempo um do outro. Queriam fotos ridículas e segredos de cabeceira. Naquela estranha cumplicidade de anos que eles reconheceram em poucas horas. Ele lhe falava música. E, sem ele saber, ela dançava.

Chegaram perto. E, quando mais perto, permitiram tocar-se devagar, um leve encostar de pernas e braços que queimava. Era como se tudo parasse à sua volta para dar-lhes mais segundos sozinhos, mesmo que não estivessem.

Ela. Que arriscou tanto para estar ali. Que há tempos não deixava ninguém entrar. Que tinha ido para aquele lugar para esquecer das cicatrizes, algumas tão recentes. Enterradas e ignoradas, como ela sempre faz. Ela, que tinha escolhido não sentir. Tentou ser racional, não haveria final feliz para ela ali. Ela, que fugia sempre que podia, ficou. Tanto clichê deve não ser, pensou. Sorriu. E seguiu.

Ele, e é o que acha ela, ignorou os senãos. Buscava por ela como quem espera por agosto. Fechou os olhos para todos os limites, regras e condições. Não ia deixá-la fugir. E, estranhamente, ele sabia todas as vezes que ela estava tentando ir embora.

Queria ela só para ele. Não esperou. Não ponderou. Roubou-a minutos a mais. Só para tê-la diante dele, falante, nervosa, de olhos arregalados e cabelo apanhado. Ela deixou-se fitar e examinar. Como em seu livro favorito, deu a ele um pretexto para olhá-la mais de perto, com aqueles olhos longos, constantes, enfiados nos olhos dela.

Ele, que sentia o cheio dela tão perto, não se conteve. E, naquele cenário improvável, lhe arrebatou um beijo. Curto, rápido e cheio de vontades.

Ela queria manter-se indiferente, mas seu corpo que tremia inteiro já lhe dava sinais de que estava entregue. Ela negou para si mesma. Estava deliciosamente em pânico. Se despediram rápido. Ela queria fugir dele o quanto antes. Não seria capaz de dizer não.

Ele não foi embora. Era pouco. Queria mais dela. Ele tinha aceitado não hesitar, dar chance àquele impulso, aquela vontade que o consumia. Arriscou. Ela voltou.

Ela deixou ele entrar no seu mundo. De formas que ele não seria capaz de imaginar. Ela, que se sentiu irresistivelmente desejada por ele. Confortável, como se já estivesse estado ali outras tantas vezes.  Ela, que entendeu muito rápido que ele não era mais um. Qualquer um. Ela sabia quem era ele para ela e o que isso significaria. Ela se viu caindo do precipício. E não se importou.

Logo depois, ela, e agora será só sobre ela, desejou que passasse. Não há final feliz, repetia diariamente. O universo parou indefinidamente para lhes dar mais tempo. Ele sabia. Ele não desistiu dela. Ela pedia por isso. E todas as vezes que ela fechava os olhos, pensava nele. Ouvia suas músicas e sorria. Sua vontade de fugir era proporcionalmente igual a vontade de ficar.

Criou então um mundo para ter ele só para ela. Onde ele não divide a cama e o café com mais ninguém. Onde os sorrisos são para ela e o reflexo nos óculos escuros, da foto tomando café, é o dela. Um mundo em que logo ele chega. Um mundo que não faz falta saber o que é, para onde vai e o que será do depois. No mundo dela, ele não precisará decidir, não haverá feridos e ela não precisa ter medo.

Ela não vai embora mais. Já é tarde. Ela olha para a tela do celular e deixa o coração acelerar, quase todas as noites e manhãs. E lê ele fazendo planos sobre como vão acordar juntos, de como ele fará o café da manhã enquanto ela toma banho e os detalhes sobre o que farão durantes as horas intermináveis que passarão quando se reencontrarem.

Ela sorri. Mas ela sabe. A realidade vai esmagar os dois.

 

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